O médico João Mallmann, 28, não imaginava que a busca pela cidadania portuguesa, no final de 2023, traria tantos desdobramentos para a sua vida. Aos 27 anos, ele viu as suspeitas de que era adotado se confirmarem.
Mas a história ia bem mais fundo do que ele imaginava. “Eu sempre desconfiei, desde que eu era criança. Sempre houve uma sensação de deslocamento, de não pertencimento dentro daquela família”, contou ele ao UOL.
“Eu nunca achei que eu fosse tratado como filho. Infelizmente, acabei passando por diversos abusos físicos e psicológicos dentro da minha própria família adotiva. Era maltratado e humilhado.”
João cresceu ouvindo que tinha dois irmãos, que morreram em um parto feito em casa —nessa versão, ele era o único sobrevivente dos trigêmeos. Ele também estranhava ter muitas fotos dele bebê, mas nenhuma da mãe grávida.
Na procura de documentos para tirar a cidadania, ele precisava da certidão de casamento dos pais. E, assim, descobriu que muito do que sabia sobre a mãe era uma mentira.
“Ela contava que era filha única, que seus pais eram filhos únicos e que vieram de uma família muito rica. Meu avô teria falecido subitamente e minha avó ‘perdeu tudo’ com jogos. Ela falava que meu pai foi o único homem da vida dela.”
“Quando peguei o documento, descobri que ela tinha nove anos a mais do que ela dizia. Vi que ela era divorciada antes de se casar com o meu pai, que eles oficializaram a união só em 2010. Tudo começou a me chamar muito a atenção.” João Mallmann
João também nunca teve informações sobre os seus avós, pais de sua mãe adotiva. Quando buscou a certidão de óbito deles, descobriu que eles morreram em 2011 e 2020. “Eu poderia ter o convívio com eles, e não tive.” E ele descobriu que a mãe teve vários irmãos. “Ela inventou uma nova vida porque tinha vergonha da origem pobre.”…
“Depois que eu descobri todas as inconsistências, pensei: ‘se eles são capazes de mentir sobre tudo isso, eles também são capazes de mentir sobre a minha vida. Algo ali me dizia que eu era adotado.” João Mallmann
Pedido de ajuda
Em fevereiro de 2024, o médico fez uma postagem no Instagram desabafando sobre o que descobriu. Ele tentou conversar com os pais e pedir explicações, que não aconteceram. A publicação viralizou e ele foi atrás de amigos da família para tentar descobrir sua história.
Quando pessoas próximas confirmaram suas suspeitas de adoção, ele acabou descobrindo que seus documentos de nascimento eram falsificados. “Eu cheguei a tentar bater de frente com eles e conversar, para dar a oportunidade de eles me explicarem. E, infelizmente, eu não fui bem recebido, fui muito humilhado.”
“No início, eles chegaram a falar que eu era louco e estava em surto psicótico, que eu era filho biológico deles. Hoje em dia, eles assumem que eu fui adotado ilegalmente. ” João Mallmann
Pesquisando, João encontrou pessoas que estiveram diretamente envolvidas com o processo de sua adoção ilegal. Ele descobriu que o caso foi premeditado: ele foi “encomendado” para ser levado para aquela família.
“Quando a pessoa que me transportou do hospital até a casa dos meus pais adotivos veio conversar comigo, ela me confirmou várias suspeitas. Meus pais falavam que eu fui deixado na porta deles, mas não fazia sentido porque eles moravam em apartamento.”
Uma amiga o orientou a postar sua história no TikTok, porque os algoritmos entregariam o conteúdo para além das pessoas que o seguissem. “Saber que aquela quantidade de pessoas estava escutando sobre todos os meus traumas foi assustador”, afirmou.
Uma das suas primeiras postagens sobre o assunto beira três milhões de visualizações.
Não demorou para que informações começassem a chegar para ele, que teve de aprender a filtrar o que parecia ou não crível. “No início, eu não filtrava nada. Investigava tudo. O que se confirmava servia de filtro para que as próximas informações pudessem ser levadas em consideração ou não”, explica João.
Dois anos antes, João tinha feito um teste genético por curiosidade, sem intenção de busca parental. Mas, naquele momento, ele foi surpreendido por uma informação: tinha ascendência alemã, e não ítalo-portuguesa, como seus pais adotivos afirmavam.
Quando falou sobre isso nas redes sociais, uma seguidora mandou mensagem para ele e se colocou à disposição para ajudar a encontrar seus parentes por meio da genealogia. Em pouco tempo, eles tinham a desconfiança de que ele descendia de um homem que se chamava Marino. “Hoje eu sei que ele é o meu avô.”
“Eu fui de descendente em descendente do Marino, perguntando se eles conheciam alguma história de criança roubada, doada ou vendida na família. Até que conversei com um homem chamado Alviro, que disse que tinha certeza de que eu era sobrinho dele.” João Mallmann
“Ele disse que o Adriano, meu irmão por parte de pai, falaria comigo. E me contou toda a história, sobre como os fatos se desenrolaram na cidade de Turvo (PR), e que sabiam da minha existência. Que meu pai, Giovani, estava me procurando”, completou.
Exame de DNA tirou a dúvida
“Os testes genéticos me trouxeram muitas respostas, inclusive a maior de todas: encontrar meu pai biológico. Quando fomos fazer o exame de DNA, a gente fez uma chamada de vídeo. Foi assim que conversei com ele pela primeira vez.” João Mallmann
Sem o resultado do exame, João tinha receio de criar expectativas e depois se frustrar. Mas, mesmo antes do DNA, seu pai biológico falou sobre sua mãe. “Depois que saiu o exame, fui atrás dela. O que era uma agulha no palheiro ficou mais fácil”, afirma.
“Uma amiga colocou o nome dela em um grupo do Facebook, da cidade que ela morava na época em que eu nasci, e em segundos a gente conseguiu identificar a minha irmã e consegui conversar com a minha mãe.”
“A minha irmã por parte de mãe não sabia da minha existência porque a minha mãe não passou a gestação próxima dela. Ela teve de ir para Curitiba trabalhar, porque foi o único lugar que ela arranjou emprego, e a minha irmã ficou na cidade do Turvo.” João Mallmann
João afirma que a mãe ficou tomada por um sentimento de vergonha e arrependimento. “Ela foi coagida a acreditar que era a culpada dessa história. Ela foi uma mulher vulnerável, que estava no puerpério e passou por várias coincidências horríveis que culminaram na minha adoção ilegal.”
A história da ‘adoção’
Grávida, a mãe de João, Ana Maria, foi de Curitiba para Guarapuava para procurar emprego. A ideia era se alocar na cidade e morar com os dois filhos. Só que ela foi roubada no ônibus e acabou sem dinheiro. Ela começou a ter contrações, foi ao hospital e pediu ajuda para uma enfermeira.
Segundo Ana Maria conta para ele, foi essa enfermeira, junto com o obstetra, quem a coagiu a entregar João. “Falaram que ela era pobre, que não tinha onde cair morta. Estava sem um centavo e não tinha uma roupinha ou um cobertor para me levar.” Foi então que João acabou parando na casa da família adotiva.
O encontro
O encontro entre mãe e filho, 28 anos depois, aconteceu na rodoviária de Curitiba, no dia 17 de novembro de 2024.
“Foi simbólico porque a última vez que nos vimos, em janeiro de 1996, foi na rodoviária de Guarapuava, quando ela foi deixada lá e eu fui levado para a adoção ilegal. Fechamos esse ciclo.” João Mallmann
Depois do primeiro abraço, eles foram tomar café da manhã e conversar.
Mesmo morando em cidades diferentes, mãe e filho mantêm contato e se falam todos os dias por WhatsApp. “Acho que o João criança, que desejou muito ser amado, está feliz. Isso sara a ferida, sabe?”
Nas redes sociais, João resumiu a sua busca. “Descobri que fui adotado ilegalmente”, disse. “Achei minha família biológica com a ajuda do TikTok e sou muito grato por isso.”
Família adotiva fala em ‘amor incondicional’
Em nota enviada ao UOL, o advogado da família adotiva de João, Marinaldo Rattes, classifica a história como um “relato que atravessa gerações e expõe as complexidades das relações humanas e das estruturas legais da época em que se desenrolou”.
Ele destaca que, até o ano ano de 2002, vigorava o Código Civil de 1916, que estabelecia requisitos rigorosos para adoção.
“Os adotantes precisavam ter mais de 50 anos, serem casados entre si e obter o consentimento formal da pessoa que tinha a guarda do adotado. Essas exigências tornavam a adoção formal inacessível para muitos casais, especialmente aqueles que desejavam ter filhos ainda jovens.”
Na nota, Marinaldo afirma que João foi “deixado na porta de um casal por uma terceira pessoa” e que “sem alternativas e movidos pelo desejo de criar um filho, o casal escolheu acolher João”.
“Apesar de não atenderem aos critérios para adoção, ofereceram ao menino tudo o que tinham: amor incondicional, proteção, educação e oportunidades que lhe permitiram se tornar o homem e o profissional que é hoje.” Marinaldo Rattes, advogado da família adotiva
No Brasil, a chamada “adoção à brasileira” tem pena prevista de dois a seis anos de reclusão. Porém, se o crime é praticado por motivo nobre, a pena é diminuída para até dois anos, podendo o juiz conceder perdão.
Célio Ribeiro, presidente executivo do InterID, ressaltou a importância da matéria: “Esse é mais um dos muitos casos que pode ser evitado com a implantação da biometria neonatal e infantil. Precisamos acabar com a precariedade que é a questão da frágil identificação do recém-nascido, que hoje depende de uma coleta ineficiente de biometrias e de documentos em papel sem controle e integração sistêmica.
Um novo sistema de identificação precisa ser iniciado. Um novo sistema de identificação precisa ser iniciado. A adoção da Declaração de Nascido Vivo Eletrônica (e-DNV), decorrente da captura de biometria do recém-nascido e da mãe, reduzirá drasticamente casos de subtração, trocas e tráfico de crianças. E destacou: “Com a CIN, nossas crianças estarão identificadas e protegidas, fazendo da Carteira de Identidade Nacional o nosso maior instrumento de cidadania”.